Foto: Arquivo pessoal |
Oásis do Sertão: o Cariri é assim conhecido por formar um vale verde cercado pela Caatinga. A umidade acima da média regional para o interior do Nordeste tem a ver com a muralha de quase 900 metros localizada entre três estados: Ceará, Pernambuco e Piauí.
A Chapada do Araripe tem mata densa, solo poroso e uma inclinação ao norte. Essas características fazem dela uma espécie de caixa d'água natural que é drenada pela encosta cearense, onde brota água limpa, formando afluentes do rio Salgado. Sorte nossa!
É um tripé cujo lado mais fraco está na floresta, constantemente ameaçada por gatilhos como a especulação imobiliária, o agronegócio e a mudança do clima. Essa breve conclusão pôde ser tirada do colóquio realizado nessa terça-feira (26/11/2024) no auditório do Instituto Cultural do Cariri, no Crato.
"Queimadas na Chapada: calamidade, imprudência ou crime?", esse painel reuniu especialistas e autoridades que explicaram os impactos, a prevenção, as responsabilidades e a forma de combate a incêndios como o ocorreu há exato um mês e destruiu 63 hectares.
Naquela noite, a Chapada ficou vermelha
Foram mais quatro semanas sem chuva, e outubro de 2024 terminava assustador para os moradores do Crato. No dia 29, a população observava impotente as colunas de fumaça na encosta.
Quem mora nessa cidade do sul do Ceará sempre tem ao horizonte o paredão verde. Mas, naquela tarde, a visão ficou coberta pela fumaça. À noite, era possível ver e ouvir o estalar das chamas consumindo a mata.
Foram dias de muito trabalho para 42 anônimos com preparo físico de atleta. Bombeiros e brigadistas controlaram o fogo que parecia invencível por causa do vento, que sopra forte naquela altitude, e da inclinação, que chega a 90 graus.
"E sem usar água. Caminhão de bombeiros não chega lá. Nós usamos foices e sopradores para fazer uma linha de defesa, retirando a vegetação para criar uma faixa de pelo menos 1 metro de largura, que faz o fogo se extinguir quando bate na terra", explica o capitão do Corpo de Bombeiros Sócrates Souza.
Eles também contaram com o apoio de profissionais que vieram da Estação Ecológica de Aiuaba (Sertão dos Inhamuns) e da Floresta Nacional de Negreiros, em Pernambuco. Além disso, houve a colaboração de um helicóptero da Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer), usando uma bolsa que carregava cerca de 500 litros de água.
"Nosso objetivo era impedir que o fogo chegasse ao platô, onde está a Floresta Nacional do Araripe", explica o capitão.
Fogo na encosta
Depois do incêndio controlado, ficaram visíveis as cicatrizes na encosta. Uma área que reunia diversos tons de verde ganhou coloração escura, entre o cinza e o preto.
O paredão onde ficam as fontes é o lado mais ameaçado pelos incêndios. Ano passado, foram 19. Apenas dois ocorreram no planalto, onde fica a Flona Araripe. Os outros 17 foram na encosta. O dado foi divulgado por Vicente Alves Moreira, responsável pela Brigada do ICMBio.
E aí chegamos ao título desta coluna. No colóquio, estava o biólogo Weber Girão, que, há exatos 28 anos, descobria a espécie soldadinho do Araripe, pássaro endêmico que virou símbolo da preservação.
"A ciência só alcançou o soldadinho porque, em 1946, foi criada a Floresta Nacional do Araripe, inclusive incentivada por pessoas deste Instituto Cultural do Cariri. Ela manteve as condições de água e componentes da vegetação para o pássaro na encosta", disse Girão.
O conservacionista lembrou que é preciso ficar atento e evitar o que os cientistas chamam de ponto de não retorno, que é quando um ecossistema perde seu equilíbrio de maneira incontornável.
O problema está no estrangulamento da Flora, porque a encosta, que serve de proteção, está sendo devastada, principalmente na região dentro do município do Crato entre as Guaribas e o Romualdo.
E é principalmente nessa área de mata úmida e com água abundante que o soldadinho e a lavadeira da mata criam suas famílias. É daí também que depende o abastecimento de água de dezenas de comunidades e inclusive de bairros nas cidades do Cariri.
A conclusão a que se chega é de é preciso proteger a encosta e isso só pode ser possível com a criança de novas unidades de conservação.
Cidade da cultura também é da ecologia?
Presente no colóquio, o secretário de Meio Ambiente do Crato, George Borges, afirmou que será criada uma unidade de conservação do tipo Refúgio de Vida Selvagem (Revis) em 68 hectares.
"Era uma propriedade que o município tinha feito a doação a produtores de mel, mas retomou e agora vamos criar o Revis. Por enquanto, a brigada municipal já vai ficar lá", prometeu o secretário.
Porém chama atenção algo que ocorre nos bastidores do conservacionismo do Crato. Algumas das áreas mais importantes da encosta estão no nome de famílias tradicionais.
Até o momento, quase nenhuma demonstrou altruísmo o bastante para criar RPPNs, as Reservas Particulares do Patrimônio Natural, unidade de conservação que não afeta a titularidade do imóvel.
Haveria apenas uma RPPN criada por particular, que, inclusive, está às vésperas de completar 10 anos. E há também as reservas da Aquasis, que tem dificuldade de comprar novas áreas porque a negociação com os vizinhos é emperrada, seja pela falta de consciência ambiental, seja pela esperança de dinheiro farto trazida pelo mercado imobiliário.
E assim vivemos, ainda apreciando o horizonte verde, mas com receio de que esteja com os dias contados. Afinal, o Crato, cidade da cultura, viu o seu único museu virar ruína... O que o impede de manter a essa incoerência em relação à Chapada do Araripe?
Fonte: Paulo Henrique Rodrigues / Diário do Nordeste
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