sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Ter um pedacinho de chão

13.02.2015

A fé para fazer chuva é a mesma que permite sonhar. No sertão, a seca persiste, mas permite ao sertanejo o que antes lhe parecia impossível: possuir até coisa que a terra não dá

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Tudo em Maria de Fátima Santos Feitosa começa na casa. Do tempo que não existia negócio de morar em casa com piso de cimento, ela agora pode sonhar com cerâmica.
FOTOS: FABIANE DE PAULA
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Hoje, Nonato Cruz tem moto e estante com TV de tela plana na sala, mas não lembra de ter alegria tamanha para superar a bicicleta.
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Tudo em Maria de Fátima Santos Feitosa começa na casa. “É meu alicerce. Meu sonho todo começa nisso aqui”, ela diz. Desde que caiu o teto da casa de taipa onde foi morar logo que casou com Domingues, desejava ter um pedaço de chão com casa de alvenaria e condição para ir botando coisa dentro. Demorou anos, mas os programas do governo e a agricultura familiar foram dando conta de trazer as melhorias. Trocou o colchão de folha de bananeira por um de loja, conquistou terra no assentamento Monte Alegre (Tamboril), construiu casa com parede de tijolo e chão de cimento. “Agora tenho um novo sonho”, brada ligeiramente envergonhada, levando as mãos ao rosto num riso frouxo. Ela curva o corpo para a frente na cadeira de balanço e ergue novamente a voz: “Meu sonho é acrescentar mais minha casa. Às vezes, o Domingues diz que não precisa porque nossa casa já tá grande, mas eu digo: ‘Não, minha família tá crescendo’. Eu tenho o sonho de rodear minha casa toda de alpendre pra caber muita gente e parar desse povo ter que, na festa junina, dormir em rede nos pés de pau”.
Maria de Fátima é do tempo em que não existia negócio de morar em casa com piso de cimento, mas agora sonha com cerâmica. A possibilidade de ter no sertão virou tão real que até o sonho de ir embora na juventude agora parece distante. “Eu tinha essa vontade de ir, que eu via minhas amigas indo e voltando tão bem arrumada, com a cor assentada. Mas a mãe nunca deixou as filhas saírem de perto dela”, ela diz. E emenda que na vida não abriu mão de estudar: fez até a quarta série porque a mãe não tinha como pagar estudo para todos os filhos. Viu carta de ABC, cartilha e primeiro livro. Só foi fazer Ensino Médio adulta, quando soube que tinha escola municipal. O gosto pelas letras era tanto que se aposentou professora, mas nunca deixou a luta com a terra. É do cheiro verde a render R$ 150 por semana no quintal produtivo que vem saindo tudo diferente: alimentação variada, moto, carro. O quarto ano de seca diminuiu a produção, mas não deixa faltar comida à mesa. Sempre que Maria de Fátima pega o dinheirinho para comprar algo que precise, é automático vir à mente um cântico. “Eu quero ver, eu quero ver, acontecer, acontecer. O sonho bom, sonho de muitos, acontecer”, reproduz com voz aguda. E, mesmo sem carecer de explicação, emenda num fôlego só: “Esse cântico dói dentro de mim porque eu tinha um sonho que com fé em Deus vem se realizando”.
Em outra ponta do Sertão dos Inhamuns, Nonato Cruz, 59, ajeita o boné azul sobre a cabeça e faz o prognóstico: “Parece que agora a seca tá sendo é maior que 70. Tão dizendo que vai ser outro Quinze né? Eles têm medo, aí quando dá fé querem comparar”. E balança a cabeça em tom de dúvida, porque hoje em dia de fome homem não morre e seca mesmo quem vem passando é animal. No sertão onde meio mundo de gente hoje tem moto, não se viaja mais a pé como Nonato tanto fez para escapar da seca de 70, trabalhando nas frentes de serviço do governo. O cansaço foi tanto que ascendeu o sonho da bicicleta para não ter mais que chegar nos cantos no dedão do pé. “No 70, viajei muito a pé. Quando foi em 72, comprei uma bicicleta. Passei a noite me acordando e passando a mão pra saber se ainda tava perto de mim”. Era manhã quando Nonato Cruz comprou a bicicleta com ajuda do patrão que o havia empregado há pouco. Achou os faróis tão bonitos que andou oito léguas à noite para olhar o farol. Agora, tem moto e estante com TV de tela plana na sala, mas não lembra de ter alegria tamanha para superar a bicicleta.
Besta-fera
“Só não pode possuir coisa no sertão quem inventa de comer carne todo dia”, sentencia Francisco José Vieira, da porta de casa, em Independência. De primeiro, ele diz, o sertanejo só comia arroz e feijão. A vida mudou. “Mas eu não tenho vergonha de dizer. Tenho pena de dar 20 reais em quilo de carne. Se comprar, vai embora o dinheiro da gente. De arroz, dá pra comer um bocado de tempo. Não é miséria. É economia”, ele diz. Carne na casa de Francisco José só se for da criação do terreiro e tem que dar para todo mundo. Porco que dê para a família toda comer uma semana ele não vende nem pedaço. E se não tiver, também não compra porque não é homem de história de fiado. “Pode é torcer os beiço porque dever não devo não”. A postura tem razão de ser. Ainda criança, ele alcançou a avó dizer que Padim Ciço deixou uma briga no mundo para a era de 70 em diante ter bom tempo em pouco tempo, muito pasto e pouco rastro. “Ai diziam que ia aparecer uma besta-fera ai tomando o que era da gente nas casas. E apareceu mesmo. O pessoal vem aí vender roupa, comida, tudo na porta mesmo. É a besta fera perseguindo as pessoas. Quem não tem cabeça compra mesmo”.

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