sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015


Caminhos transformados

13.02.2015

O medo de faltar água é o mesmo. O que mudou foi a forma de atravessar a seca. Roça virou quintal de produção, gado foi trocado por cabra e ovelha. No sertão, o homem aprendeu que não tem que combater falta de chuva. O desafio é conviver

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23% da capacidade do açude Castanhão segue com água. Com as baixas dos últimos anos , a cidade de Jaguaribara emergiu.
FOTO: BRUNO GOMES
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Não é raro ver mulheres terem que carregar baldes d’água em ‘mané-mago’, uma espécie de aparato feito com madeira e pneus de bicicleta.
FOTO: FABIANE DE PAULA
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Isabel Santos vende parte da produção de legumes e hortaliças do quintal produtivo diretamente para o governo, uma forma de melhorar a renda.
FOTO: FABIANE DE PAULA
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A Defesa Civil do Estado está assistindo 68 municípios para abastecer as cisternas com a Operação Carro-Pipa.
FOTO: EDUARDO QUEIROZ
Seca grande até hoje espinha o sertão, o que mudou foi a forma de atravessar. Se não chove, o homem do campo troca gado por cabra e roça por quintal de produção. Aprendeu a plantar pra gente e pra animal depois de muita aflição ao vê-los morrer – reses e homens - pela beira da estrada. Vem escapando mais uma vez com a ajuda de um ou outro programa emergencial do governo, mas ação duradoura de tirar mesmo preocupação do sertão ainda não viu. O agricultor reconhece que a vida mudou: de fome quase já não se morre, as antenas parabólicas viraram adereço discreto nas casas depois das imponentes cisternas, as salas ganharam móveis e até TV de tela plana. Mas a possibilidade de realizar o sonho de ter não apaga uma dor profunda que já atravessa tantas décadas com medo de findar a água.
Elisiar Ferreira dos Santos, 56, abotoa a camisa azul e põe sobre a cabeça um boné. Deixa a casinha que divide com a esposa Isabel, na localidade de Monte Alegre, em Tamboril, pelos fundos para apresentar o quintal produtivo como quem anuncia milagre depois de três anos de seca: “Ainda temos horta e animal. Aqui tá todo mundo pagando suas dívidas em dia”, orgulha-se. E logo em seguida ergue o queixo para explicar que as 27 famílias que moram na comunidade são privilegiadas porque ainda resta quase um quinto da água do açude que conseguiram com o governo depois de fazer muito protesto em Fortaleza. “Meu pai nasceu e morreu na agricultura, mas nunca pôde dar um passo pra frente porque toda vida foi morador de patrão. Só que comecei a me envolver com movimento social da Igreja e descobri que nós tinha que se organizar e garantir nossa vida. Hoje, graças a Deus, meus filhos não sabem o que é passar necessidade”, diz.
Parte da produção de legumes, hortaliças e os ovos retirados das galinhas que criam são vendidos para o governo por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Foi assim que economizaram para comprar colchão bom, televisão e moto e que agora vêm conseguindo sobreviver aos três últimos anos de seca, não sem antes ter a pele marcada pelo sol quente de pouca chuva. Neste quarto ano de seca, como aponta o prognóstico, a produção foi reduzida porque a água vem secando. “Nossa sorte é os programas sociais. Bolsa Família quase todo mundo tem aqui. Pessoal diminuiu a produção pra não estragar tanta água, aí a gente vem mantendo esse controle”, conta Elisiar. A esperança dele para este Quinze está nas experiências que aprendeu com o avô, o sonho do inverno todo baseado no feijão-brabo que vem lutando para segurar na terra e no relâmpago que clareou o céu no setembro passado.
Na cidade vizinha de Independência, Francisco José de Eugênio Vieira vai com frequência para as margens do Jaburu, em Independência, fazer água pra beber. Sem conseguir lembrar a última vez que viu o açude sangrar, entra no que antes era cheio para cavar vários palmos de cacimba até encontrar água limpa. “Aqui pra debaixo do chão eu sei que ainda tem muita”, brada, esperançoso. Francisco José não sabe dizer a idade porque não lê documento. Divide a casa com a mãe e o irmão. Quando tinha inverno, vivia de roça. Agora, depois de três anos de seca, o que tem ajudado a escapar é a aposentadoria da mãe. Onde mora não tem cisterna porque não soube como fazer para cadastrar, por isso se aventura toda semana a cavar as margens do Jaburu, tentando tirar água limpa debaixo do chão. “Se não fizer, tem que comprar água lá no Jatobá a cinco reais o litro. Compensa não!”, ele diz, enquanto tira mais um pequeno balde de lama. Um pouco mais à frente, já havia duas outras cacimbas feitas por ele. Como são muitos os que se aventuram nas margens do Jaburu em busca de água para beber, Francisco José multiplicou os buracos, uma forma de não correr o risco de perder a viagem quando for buscar sua parte.
Novos rumos
No tempo de hoje, o maior problema no sertão é de abastecimento. Apesar das 95,9 mil cisternas de placa e 34,1 mil de polietileno instaladas no Ceará, de 2011 até o ano passado, não é raro ver mulheres terem que carregar balde d’água na cabeça ou em ‘mané-mago’ (uma espécie de aparato feito com madeira e pneus de bicicleta). As ações do governo estadual para lidar com a seca hoje estão calcadas no tripé adutora, poço profundo e carro-pipa. A Defesa Civil do Estado está assistindo 68 municípios com a Operação Carro-Pipa. Outros tantos já demandaram ações ao Exército Brasileiro, que deve atender pela mesma operação. Em meio à situação crítica deste quarto ano de seca, o governador Camilo Santana, aos 43 dias de governo, ainda tenta tomar pé da situação para anunciar um novo plano de atuação. Ele defende que o Ceará tem, sim, se preocupado ao longo dos anos com a questão, tanto que dispõe de infraestrutura hídrica e planejamento que impedem Fortaleza e Região Metropolitana de enfrentar situação semelhante à que São Paulo vive atualmente. Para o governador, a grande preocupação é com o Interior do Estado, cuja criticidade ele reconhece, justificando a atuação “firme” do governo com as medidas emergenciais. “Os mananciais que abastecem nossas cidades não estão sendo recarregados. Isso requer mais do que uma atenção especial; requer uma ação efetiva. É isso que nós estamos fazendo com um amplo planejamento que traz uma série de ações para minimizar os efeitos deste longo período de estiagem”, declarou o governador. As políticas e iniciativas a serem adotadas ele promete anunciar em breve.
Mas o caminho para construir soluções efetivas ainda é árduo. Enquanto o País inteiro está mergulhado na crise hídrica, o professor José Levi Furtado, docente do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), avisa: é preciso não só investir na transposição, mas na captação de água. O Ceará vive um processo de desenvolvimento econômico crescente, principalmente em relação ao comércio. O ônus disso é o elevado consumo hídrico, principalmente pela irrigação e pelas indústrias. O desafio é elaborar projetos que atendam às áreas em desenvolvimento, como por exemplo a Região Metropolitana de Fortaleza e o Cariri, sem impactar o Interior do Ceará com as transposições. “Temos tecnologias para suprir e levar água aos lugares, mas com a velocidade desse desenvolvimento, as águas que temos hoje são insuficientes. As transposições que estão sendo feitas precisam ser bem distribuídas com a economia, mas, principalmnete, com a população, que é o essencial”, aponta o professor.
A velocidade do consumo de água é inversamente proporcional à reposição dos mananciais. Depois de três anos de chuvas escassas, os açudes do Ceará estão com apenas 19,2% da capacidade. Os cenários são de galhos de oiticicas, que antes ficavam submersos, expostos ao sol. O cheiro é forte em muitos reservatórios, que agora contêm apenas o volume morto. Alguns açudes, totalmente secos, viraram estrada para moto ou pasto de animal. O Cedro, emoldurado pelos monólitos de Quixadá, vem decaindo pela falta de chuva e de zelo. Monumento artístico e histórico nacional, preserva apenas água esverdeada e centenárias construções em ruínas. Ficou distante o plano inicial de usá-lo na irrigação e no abastecimento de Quixadá.
Jaguaribara é uma cidade que virou mar para não faltar mais água no sertão. O açude Castanhão ficou pronto em 2002, mas foi em 2009 que encheu em 18 dias 97% do que poderia comportar. Vem de lá parte da água que abastece Fortaleza pelo chamado “Eixão das Águas”. Agora, depois de três anos de pouca chuva, segue com apenas 23% de sua capacidade. A cidade antes inundada para virar esperança no sertão agora reaparece, desolada. São casas inteiras que voltaram das águas, com potes deitados sobre as pedras. Memórias deixadas para trás na esperança de melhorar a vida mesmo em tempo de grande seca.

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